Transferência Solidária de Tecnologia: análise de um caso prático

18 de maio de 2020 0 Por João Irineu

A suspensão do calendário universitário pelas universidades públicas não significou a paralisação das atividades de pesquisa e extensão, as quais foram adaptadas às novas condições de isolamento social. Assim, na condição de profissional que atua na área de inovação e propriedade intelectual, recebi demanda de um núcleo universitário de tecnologia e inovação relativa a um artefato relacionado à proteção contra o contágio do COVID-19. Trata-se de um projeto de engenharia que possibilita a fabricação de máscaras em impressora 3D. A iniciativa visou atender o serviço de saúde local e contou com ampla divulgação na mídia de nossa região. Nas reportagens produzidas os autores ofereceram o projeto para órgãos públicos interessados em fabricar as máscaras, tendo em vista a falta deste equipamento no mercado.

Recebidos os pedidos, os autores do projeto manifestaram preocupação porque ainda não existe seu pedido de proteção como patente e solicitaram ajuda ao núcleo de tecnologia e inovação da universidade, o qual, por sua vez, repassou a mim as seguintes questões:

a) Como proteger os direitos dos autores sobre o projeto se a propriedade industrial não foi depositada

b) Como garantir que o projeto não seja utilizado comercialmente pelos beneficiários

c) Como limitar a transferência gratuita do projeto a serviços públicos envolvidos no combate a COVID-19 e ao período da pandemia

d) Como proceder rapidamente, considerando os prazos existentes para a proteção e a liberação de documentos dentro de uma universidade

O fundamento para a solução do problema encontra-se na tradicional divisão da Propriedade Intelectual existente nos países latinos entre Propriedade Industrial e Direitos Autorais. Nas faculdades, as matérias são ensinadas separadamente, nas aulas de Direito Civil e Direito Empresarial, o que torna difícil aos estudantes o entendimento de que Propriedade Industrial e Direitos Autorais são dois aspectos que estão presentes simultaneamente em uma mesma realidade.

No presente caso, a dificuldade encontrada pelos autores e pelo órgão universitário existia porque consideravam o projeto da máscara apenas como uma possível nova invenção, cujo direito de propriedade decorre do depósito no Instituto Nacional da Propriedade Industrial e que, somente a partir deste depósito (cuja tramitação interna da autorização pela universidade dura meses) podia-se pensar em transferência da tecnologia.

Ocorre que o direito autoral dos redatores do projeto da máscara independe de qualquer registro, tendo em vista que a anterioridade de sua autoria pode ser comprovada pela divulgação pública da ideia, realizada pela mídia. Neste caso específico, em que não existem considerações de natureza empresarial envolvidas, tal evidência de anterioridade é suficiente.

Assim, de posse das evidências de anterioridade, preparei o documento no qual os beneficiários reconhecem a autoria sobre o projeto daqueles que o transferiram e comprometem-se a limitar a confecção das máscaras de forma temporal e material, vedando a utilização do processo em atividades empresariais, logrando o atendimento aos itens “b” e “c” da demanda.

Baseado na Lei de Proteção aos Direitos Autorais preparei um documento que permitiu a transferência imediata do projeto, contemplando os itens “a”e “d” da demanda. Utilizei também alguns aspectos da regulação anglo-saxônica do Copyright para a limitação da responsabilidade civil e substituí os articulados sobre fiscalização, multas e penalidades, presentes neste tipo de documento, pelo regime de Lei de Improbidade Administrativa.

Como se trata de uma transferência solidária de tecnologia no contexto das medidas de combate ao COVID 19 atuei pro bono na consultoria e na redação da minuta do documento (atividade permitida no âmbito de meu regime de trabalho), como um pequeno auxílio dentro do grande esforço que muitos setores da sociedade têm realizado em prol da preservação da saúde dos funcionários envolvidos no combate à pandemia.